sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

Capítulo II (B)

Em dois passos largos saltei a soleira da porta das traseiras, galguei os canteiros e esgueirei-me por cima do muro em direcção à parte mais alta da arriba. Nunca pensaria agir assim no Porto. O ambiente rural convida à aventura, força o corpo a separa-se da mente, cometendo as maiores atrocidades contra a lógica e o rigor que o mundo urbano nos impunha. Assim, a corrida que fazia de madrugada rumo à falésia, em passos largos e mecânicos, era o último vestígio de uma rotina que se fora desvanecendo ao longo das férias. Continuava a consultar o relógio, mais por hábito, já que as horas pouco ou nada significavam além de orientarem as minhas refeições. Por falar em comida, lembrei-me que o peixe que comera há já muitas horas não seria combustível o suficiente para aquela caminhada. Num entroncamento mais adiante volvi à direita, novamente em direcção à povoação, guiada pelo cheiro a pão fresco. Aqui e ali viam-se as tradicionais azenhas (do mar), usadas para moer o grão. Apesar de se encontrar uma ou outras restauradas, a maioria estava esquecida na memória dos tempos. Apressei o passo num sprint final, aproximando-me da padaria da Sra. Deolinda. Aquela Sra. já pra lá da casa dos setenta, teimava em trabalhar. Todos os dias a via junto do balcão, de feições corroídas pelo tempo, mas sempre bem disposta e divertida. Desde nova aprendera a amargura da vida, distribuindo a farinha pelos padeiros da região. Aos poucos foi aprendendo aqui e ali a arte da panificação e acabou por fazer o seu próprio negócio que actualmente sustentava com a ajuda dos filhos. O marido falecera novo, vítima de uma guerra que não era nossa, enquanto viajava pela Europa nos anos 40. Não lhe deixara grande saudade, nem vertia lágrimas quando invocava o seu nome: fora:
«Foi sempre um estafermo que nunca quis trabalhar e passava a vida em passeios e pielas, Deus lhe dê o lugar logrado». As palavras saiam-lhe soltas e naturais, com a jovialidade de uma adolescente.
- Bom dia Dona Deolinda!
- Olá senhorita! - retorquiu - tão cedo por aqui?
- Está um dia bonito demais para ficar a dormir e a senhora tem aí uns bolinhos bons demais para ficarem na montra.
Num gesto hábil e eficaz, pinçou a nata que já era hábito eu pedir e ali ficamos por mais um bocado a reviver o seu passado, já que o meu era curto e modesto demais para trazer alguma história de interesse.
O som dos sinos da capela arrastou-se pelas ruas da aldeia e chegou-me aos ouvidos quando saia da padaria em 8 badaladas demoradas...

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