terça-feira, 19 de dezembro de 2006

Capitulo II (I)

Deixei a porta entreaberta, propositadamente, esperando que inesperadamente João decidisse entrar e consumir o fogo que ardia dentro de mim. Pela mesma abertura corria um vento que me arrepiava a pele e enrijecia os bicos dos mamilos. Mergulhei na espuma e água quente da banheira. Era nova mas de estilo antigo, branca de esmalte assente nuns pés de aço. Ocupava grande parte da divisão que era iluminada por uma pequena fresta aberta de acordo com a convicção dos nossos velhos reinículas, que exigiam que nestas aberturas não coubesse uma cabeça humana.
O roupão branco de felpo estava pendurado na porta e as toalhas no armário por debaixo do lavatório. O demorado banho impacientava a minha visita que gritou da sala: - “Ainda demoras Margarida?”
Não respondi. Mergulhando novamente na água.
Passaram mais uns quantos minutos até que ouvi novamente a voz de João agora mais perto a chamar pelo meu nome: “Margarida? Está pronto o almoço, ainda demoras?”
- Não estou quase pronta. Retirei a espuma do corpo, usei a toalha, enxaguei o cabelo e enrolei-o na toalha. Vesti o roupão e dirigi-me para o quarto. Vociferei na direcção da sala: -“Dá-me dois minutos que já me apronto”.
-“Ok não demores que a comida não espera! – respondeu.
Procurei no armário o vestido cor de rosa bebé. Era curto, bastante acima do joelho e decotado suficiente. Coloquei um bikini moderno de cor azul e traçado nas costas. Voltei à casa de banho. Ao espelho penteei-me e apliquei uma loção hidratante que me deixou a brilhas. Saí para a sala onde João me esperava no sofá. A mesa estava aprumada. A toalha vermelha que vinha usando estendida de forma diferente, apensa cobrindo um terço da mesa redonda, a parte do meio, e servindo de base aos pratos brancos, talheres e copos de pé, que suplicavam por vinho.
- “Senta-te.” – proferiu João como se fosse ele o anfitrião.
- O que preparaste? – perguntei eu curiosa
-Espera que vou buscar.
Ausentou-se da sala e trouxe numa travessa da mesma família dos pratos uma massa.
- Hum! Que bom aspecto! – exclamei - o que é?
- É uma massa de bacalhau com natas e queijo fresco. Foi o que consegui preparar com a oferta do frigorífico.
- Tem um aspecto delicioso. – disse eu enquanto João me servia.
- Pena é que não haja um bom vinho para acompanhar.
- Quem disse que não há? – respondi.
Fui à cozinha e debaixo da banca, num canto do armário retirei duas garrafas de Lysias. Um vinho regional alentejano ainda pouco conhecido. Regressei com néctar na mão esquerda e um saca-rolhas na direita.
- “Espero que gostes. Foi-mo recomendado, por um enólogo conhecido.”
- Deve estar óptimo, principalmente para quem ia beber água. – Disse João pegando na garrafa e observando o rótulo azul, com a imagem da Deus que dava nome ao Vinho. Leu o rótulo em voz alta:

“Este vinho é inspirado nas memórias longínquas da terra antiga de Portalegre e nos mitos fundadores da nossa identidade.
Lysias, filho de Baco, aqui viveu e construí um templo em honra de seu pai o Deus do Vinho. Conta a lenda que a cidade de amaia, mais tarde Portalegre, foi fundada em memória de sua bela filha. Maia, de seu nome, enfeitiçou o vagabundo Dolmes com a sua beleza e este tirou-lhe a vida.
Durante 60 luas diz-se que Lysias esperou em vão que Maia voltasse e quando julgou vê-la na sua imaginação, morreu de súbita alegria vinda do mais profundo do seu íntimo.
Deixou-nos esta história forte que se fez lenda e percorreu séculos, sempre ligados ao nosso imaginário e que é agora celebrada com este vinho inscrito nos afectos. Autêntico como o sentir de Lysias, mágico e mítico como tudo o que descende de Baco.”

A voz melódica e tom apaixonado com que João leu o Rótulo, transformaram o momento, num episódico idílico. Deu-me uma imensa vontade de beber o ósculo do meu parceiro de mesa, tal o charme que jorrava das palavras que proferia.

- Excelente discrição – proferiu João.
- Engraçado quando se lê uma garrafa normalmente costuma-se começar pela origem, pela casta e não pela história que normalmente é acessória ao néctar. – disse eu.
- “Sim é verdade. Acontece, que a imagem do Deus Lysias despertou-me a atenção. Sabes é que sou professor de história na Faculdade de Letras de Lisboa e lecciono várias cadeiras de grego e latim. Aliás sou um verdadeiro apaixonado pela civilização Grega e Romana”.
- “A sério? Que fascinante! Sempre pensei que os professores de história fossem uns totós de óculos que vivessem para os livros.
- Bem, não sei se hei-de tomar isso como uma crítica aos meus colegas ou como um elogio à minha pessoa. – disse sorrindo enquanto enroscava o saca-rolhas. De repente ouviu-se um plop, sinal de que a rolha tinha sido retirada com sucesso.
- Enquanto o vinho respira, deixa-me servir-te um pouco de massa Guida” - o nome soou carinhosamente, principalmente porque acompanhado por um sorriso amoroso e porque era usado por minha mãe.
- Nem repliquei. Limitei-me a olhar para ele siderada, pelo diminutivo utilizado. Parecia que me conhecia há anos…

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